quarta-feira, 18 de junho de 2008

O Segredo de Beethoven

Ed Harris decifra um enigma que pareciaimpossível: o do íntimo de Beethoven por Isabela Boscov

Um dos mistérios mais estupendos da história da música é que o alemão Ludwig van Beethoven (1770-1827) tenha composto a Nona Sinfonia, de força e complexidade indescritíveis, quando já estava surdo como uma porta. Como ele nunca foi um grande missivista e a essa altura vivia também como um recluso, sem um círculo de confidentes, faltam aos pesquisadores subsídios para entender o que se passava no íntimo de Beethoven enquanto ele compunha sua obra monumental, e como se travou sua guerra entre som e silêncio. Em O Segredo de Beethoven (Copying Beethoven, Estados Unidos/Alemanha, 2006), a diretora polonesa Agnieszka Holland oferece uma versão ficcionalizada dos fatos.
Mas é uma versão tão bem arranjada, e tão atenta para com aquilo que efetivamente se sabe sobre a busca artística do compositor – por exemplo, sua crença de que o sagrado e o profano eram esferas antagônicas, mas não opostas, do espírito humano –, que, se non è vera, è ben trovata. Em outras palavras, não foi isso que aconteceu, mas bem que poderia ter sido. Para que a platéia ganhe ingresso à intimidade do compositor, Agnieszka e os roteiristas Stephen J. Rivele e Christopher Wilkinson criaram a figura de Anna Holtz, uma jovem estudante de composição contratada como copista do mestre, para passar a limpo suas partituras. Interpretada de forma correta e discreta pela alemã Diane Kruger (antes vista como a inexpressiva Helena de Tróia), a pupila toma um tombo ao constatar quanto o gênio tem de humano.

O temperamento de Beethoven é medonho, seus aposentos são imundos e seu amor opressivo reduziu seu sobrinho, Karl, a uma figura patética. Mas essa medalha tem um reverso, e Anna se fascina mais ainda do que julgava possível com quanto de genialidade e inspiração esse homem grosseiro é capaz de conter. Felizmente, o filme se esquiva de caracterizar essa atração e repulsa de forma carnal. O erotismo que corre entre Anna e Beethoven se dá num plano mais complicado, mas nem um pouco menos intenso – e é de imaginar quanto de virgindade tenha restado na moça depois de ela passar duas horas com os olhos nos olhos do mestre, durante a estréia da Nona em Viena, marcando tempo para que ele pudesse reger a orquestra sem ouvi-la (na verdade, a tarefa teria sido executada por um amigo do compositor). Na categoria das transas metafóricas, essa fica entre as mais criativas e eficazes.

Mas de nada adiantaria fazer um filme tão engenhoso sobre Beethoven se seu protagonista não fosse crível. É aí que falham as cinebiografias do compositor, como Minha Amada Imortal, com Gary Oldman. E é precisamente aí que Agnieszka acerta em cheio. Em seu filme, o americano Ed Harris faz por Beethoven aquilo que, dois anos atrás, o suíço Bruno Ganz fez por Adolf Hitler em A Queda – de alguma forma, ele compreende o que está no âmago de seu personagem e o ilumina por dentro. Acredita-se que Beethoven não tenha sido sempre irascível como o foi em seus últimos anos, quando enfrentou a tortura da surdez e as exigências sobre-humanas que impôs a si mesmo e a sua obra. Consta que, na juventude, foi expansivo e generoso para com músicos e amigos.

Harris, um ator que costuma se preparar de forma obsessiva, faz de seu velho Beethoven uma soma de tudo o que ele possa ter sido no decorrer da vida – um homem temperamental, rude e egoísta, mas também sensual, vulnerável e até divertido. Acima de tudo, ele localiza nessa bagunça espiritual a origem da contribuição indestrutível de Beethoven: a convicção de que a beleza passa longe do bonito, do organizado e do agradável, como se postulava então. A beleza está no tumulto, na mistura do vulgar e do sublime de que os homens são feitos. Ao suceder em dar forma a essa convicção, Beethoven quebrou as amarras do classicismo e libertou a arte. Faltava, até hoje, alguém capaz de dar forma ao homem que pensou essa idéia. Não falta mais.


Como Beethoven mudou a música

• Magistral em quase todos os formatos de composição, Beethoven fez a transição do classicismo para o romantismo, mudando a percepção do que era o belo na música
• Suas sinfonias (em especial a Terceira, a Quinta e a Nona) transformaram esse tipo de composição em verdadeiras obras de engenharia musical. A orquestra passou a trabalhar como se fosse ela própria um instrumento
• No período clássico, as sinfonias duravam em média quinze minutos, e cada compositor as produzia às dezenas. As de Beethoven duravam pelo menos quatro vezes mais e exigiam um trabalho hercúleo de estruturação tonal e instrumental

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