segunda-feira, 30 de junho de 2008

Sedução e persuasão

Achei interessante publicar aqui este artigo do professor Markus Figueira para tentar contrabalançar o artigo do professor Isaar Soares já publicado AQUI.

SEDUÇÃO E PERSUASÃO: OS “DELICIOSOS” PERIGOS DA SOFÍSTICA POR MARKUS FIGUEIRA DA SILVA Professor do Departamento de Filosofia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN)

RESUMO: Este artigo atualiza uma polêmica que atravessa as relações entre filosofia e educação, pelo menos desde o (des)encontro entre Platão e os sofistas: é a virtude que há de se ensinar? É a política? É a retórica? A tese aqui defendida é que o domínio atual da ignorância e da utilidade é um resultado, lamentável, do triunfo dos ideais sofísticos sobre os platônicos.
Atualmente a palavra “ética” é mais escrita, mais pronunciada,mais reclamada que a própria palavra “filosofia”. Para o sensocomum, ética figura como uma espécie de correção da conduta,ou ainda como modelo disciplinar. Pode-se definir a ética como a parteda filosofia que problematiza o agir humano. Mas o que vemos é ocontrário, a ética é reclamada como solução para os problemas definidosno âmbito das sociedades. Em pouco tempo a massificação dotermo e o escamoteamento do seu sentido originário como conceitotêm submetido a noção de “ética” a uma banalização tamanha queacaba por afastá-la do seu sítio natural que é a filosofia. Há um grandeperigo em atribuir à palavra “ética” um valor meramente utilitário.A ética não é apenas um termo instrumental, ela se constitui numproblema pensado por toda a tradição filosófica, e o risco de se perdera capacidade de problematizá-la conduz necessariamente a umdesastre, que é transformá-la numa aparente noção, facilitando-a,coisificando-a e vulgarizando-a. Tal preocupação já havia sido levantadapor Platão em seus diálogos,1 quando dissocia a dialética da retórica,ou ainda quando diferencia a busca de um verdadeiro saber dosimples exercício de uma téchne. Ainda que não possamos aprofundarneste momento o sentido desta afirmação, não podemos deixar defazê-la: quando Platão acusa o sofista de fracassar por dizer o não-serno lugar do ser, esse fracasso pode ser dito apenas do ponto de vistaepistemológico, mas não do ponto de vista da efetividade histórica,uma vez que os sofistas fundaram o primado da aparência, erigindo,no lugar da problematizadora filosofia, a facilitadora retórica. As terríveisconseqüências deste procedimento podem ser percebidas no exercícioda política por meio das técnicas de dominação operadas pelosdiscursos.Vem de longe a idéia de que é possível moldar o ethos por meioda educação. Desde a Grécia Antiga, precisamente no século V a.C., afigura do didáskalos, isto é, o professor, toma o lugar do poeta-aedo nacondução (agogé) do processo formativo do cidadão. A sofística iniciaum movimento de tornar públicos os ensinamentos com a promessade formar homens sábios, virtuosos, poderosos e felizes. Paralelamentea este novo modelo de educação surge a idéia de publicidade. Entre asduas a mais forte, a que vigora hoje como instrumento massificador eseduz com uma eficácia sem limites os sentidos por ela capturados ésem dúvida a publicidade.

Utilitarismo e pragmatismo
Considerar a educação como estratégia fundamental para moldara cidadania – paidéia – é uma idéia antiga e tradicional, porém desde operíodo socrático-sofístico essa idéia aparece como fundamentadora danoção de ética e, mais que isso, como manancial de problemas teóricosque ensejam a prática da política. Neste sentido, a retomada do pontode vista dos sofistas (Platão, Prot. 319a), “ensinar a arte da política e empreenderfazer dos homens bons cidadãos”, anuncia o lugar da ética comoprefiguradora da política e da educação como prefiguradora do éthos. Osaber divulgado pelos sofistas sempre foi entendido como sendo do âmbitoda filosofia, o que não quer dizer que seja filosófico, ou seja, o que éfilosófico é o embate em torno da possibilidade do ensino da arte (téchne)política. O que está em jogo é a eficácia da educação para modelar o éthosde uma sociedade.
Vê-se com isso que a má compreensão da relação entre retórica efilosofia pode ter sido a origem do erro de considerar-se hoje a ética maisimportante que a filosofia ou, ainda, de definir a ética como um conjuntode normas convencionadas em sociedade para atuarem como dispositivosde correção da conduta dos indivíduos. O problema dobrade tamanho quando entra em questão o uso que se faz da ética pelosinstrumentos de poder.
A deteriorizacão dos valores é hoje em dia reclamada pelos “corretoresda ética”, entretanto o que eles reclamam é a reforma da conduta,a eficácia da norma. O que deixam de fora da reclamação é a discussãofilosófica, isto é, o discurso que reclama a ética deixou perder-seo diapasão filosófico, tornou-se ideologia, ou um conjunto de preceitosdefinidos no interior de determinados segmentos da sociedade. Tais“corretores” agem no sentido de setorizar os modelos de conduta, produzindouma fórmula ética para cada setor da sociedade. Com isso elesprecipitam no abismo a unidade da ética. Promovem uma imageminautêntica dela, separam-na da filosofia. Mas o que se esconde por trásdesta atitude? O interesse pusilânime na fabricação de resultados. Estaprática se sustenta na apropriação indevida da natureza humana, tornando-a coisa, reduzindo o seu sentido natural de realização a um elementonumérico, estatístico, operado pela racionalização econômica epolítica por meio da sedimentação cada vez maior de uma lógica pragmáticae utilitária. Neste sentido, é crescente o número de cartilhas,códigos, normas de conduta que têm como objetivo a otimização da produçãode bens mediante a correção dos desvios de comportamento isoladose nocivos ao funcionamento dos sistemas definidos segundo uma mecânicaque exclui a autonomia do humano e calcifica a pragmaticidade davida, cuja finalidade se mostra nos resultados que contabilizam ganhoseconômicos e políticos. Haveria aqui um erro de interpretação das idéiashá muito desenvolvidas ou, ainda, o esquecimento do humano como valorfundamental precipitou a filosofia numa plástica de vida na qual ela mesmaficou subordinada ao útil? Vejamos…

Paidéia
A educação tornou-se objeto de investigação dos pensadores gregosno século V a.C., os quais começaram a pensá-la como estratégia fundamentalpara moldar a cidadania. Havia, naquele momento, um interesse epistêmicode articular a pergunta pela natureza humana (phýsis antropou) à perguntapelo exercício do modo de vida (éthos). Naquele momento, a ética foiproblematizada com vistas a definir os elementos constitutivos da política. Apaidéia é a palavra grega circunstanciada ao período em que surgem os sofistaspara exprimir “o conjunto de todas as exigências ideais, físicas e espirituaisno sentido de uma formação espiritual consciente”. E ainda: “No tempode Isócrates e de Platão, está perfeitamente estabelecida esta nova e amplaconcepção da idéia da educação” (Jaeger, 1986, p. 233).
Pode-se dizer que a sofística deu início a um movimento educacionalpoderoso, do qual ainda e mais do que nunca somos herdeiros, e que temcomo estratégia de dominação a publicidade e como justificativa a necessidadede uma formatação espiritual do indivíduo. É, portanto, na política e na éticaque mergulham as raízes do seu modelo de educação (Paidéia, 238).
A partirdesse momento a educação, mediante o ensinamento dos valores por ela definidos,criará a ilusão de que é possível moldar o ideal de sociedade. Entretantoa prática educacional seguirá plasmando diferenças sociais e políticas e elegendoo poder da fala, do discurso, como arma fundamental de dominação.

Sedução e persuasão
A política passará a ser exercida em todos os meandros da sociedade eserá definida como a arte da persuasão. Persuasão como convencimento epersuasão como falácia e hipocrisia.
A eficácia persuasiva é anunciada por Górgias como finalidade maiordo discurso (Colli, p. 83). É a hegemonia da retórica que passa a interessar.A retórica surge com a dialética por uma “necessidade política”: “Noconfronto com as formas expressivas da arte e com os produtos da razãoligados à esfera política, a linguagem dialética entra no âmbito público”(Colli, p. 85).
A retórica anuncia a figura do orador que luta para subjugar a massade seus ouvintes. O lugar do discurso reveste-se de poder, passando a ser olugar da autoridade. A formação dos indivíduos prima por estabelecer umhiato entre os que definem com seus discursos (logoi) o lugar da autoridadepolítica e aqueles que a ela se submetem. A noção de sabedoria para a cidadedos muitos discursos passa a ser identificada com o poder. Assim, o éthos, oua conduta, ou, ainda, o modo de ser dos cidadãos, obedece à dualidade deposições sociopolíticas defendida pelos retóricos: de um lado a formação deuma classe de políticos-oradores que tende a ocupar os cargos públicos, deoutro a formação de uma massa de receptores de discursos, manipulados emsuas paixões, docilizados pela aparência dos discursos políticos. Os sofistasprometiam a seus ouvintes/alunos, segundo Platão, que por intermédio dassuas lições eles alcançariam a excelência (areté) da téchne oratória que os levariaa predispor do modo mais eficaz possível o surgimento da emoção nopúblico. Daí a construção da plástica figura do orador-político, cujas armassão a sedução e a persuasão. O problema surge quando, ao invés da formaçãointegral do espírito político (cidadão), busca-se o treinamento e a composiçãode uma imagem plástica do político identificado de imediato com afigura do homem de poder, o que encanta o público com um discurso“agradável” e eficaz. Funda-se com isso o primado da aparência (dóxa), ouseja, o conteúdo dos discursos visa a mexer com a emoção do público,apaixoná-lo, e não instruí-lo ou educá-lo. Subverte-se com isso o sentido originárioda paidéia, que era o de formar integralmente os indivíduos e tornáloscidadãos. Opera-se uma cisão entre o sentido paidêutico necessário àconstituição de uma sociedade ciente dos valores a serem praticados e umaimagem da política que se perpetua pelo fetiche e pela facilidade de aceitaçãopromovida pela publicidade fabricada.

Deliciosos perigos.
A noção de útil convencionada e praticada nas relações políticasacaba por delimitar o modo de vida comum dos homens em sociedade.
Em nome da utilidade proclamam-se saberes, normas, regras de conduta.Ocorre que o conflito se mostra quando se deparam as duas noções deutilidade, a saber: o útil do ponto de vista subjetivo e o útil do ponto devista objetivo.
Quando considerado do ponto de vista subjetivo, é útil tudo o queé do interesse de quem pensa os critérios da utilidade e a maneira depraticá-los. Quando considerado do ponto de vista objetivo, o útil apresenta-se sob a forma de resultados. Assim, para o bom funcionamento dasociedade como lugar dos muitos discursos é mister que os critérios e aspráticas subjetivas configuradores do poder construam os seus “cantos desereia”, isto é, que representem a prática da vida segundo um modelo aparente,otimizador das relações de produção que, não obstante, esconde aambigüidade de ser “belo e agradável”, quer dizer, apaixonante, mas tambémrestritivo e condicionante. Ser ético passa a ser seguir as determinaçõescodificadas e não pensá-las, muito menos problematizá-las. Do ponto devista dos resultados obtidos com a prática freqüente dos valores, a ética destina-se aos elementos da coletividade. Contudo, tendo-se em conta a subjetividadeprodutora de valores, o útil não se mostra nos resultados, masnos interesses que entoam a ordem melódica do canto da sereia: o poderefetiva-se por meio dos discursos e aquele que o exerce se regozija com arealidade político-social mantida nos limites da aparência.
O discurso que seduz e convence produz uma espécie de deleite:ele diz aquilo que se espera ouvir, porém de modo agradável. Como dizCícero, a boa retórica é aquela que produz três tipos de afecção, a saber:docere (instruir, ensinar), delectare (agradar) e movere (comover) (apudReboul, 2000, p. XVII).
O problema reside na aparente objetividade do discurso. A coletividadeaceita aquilo que lhe parece agradável. Ora o que parece agradávelnão produz desconfiança e torna-se um “delicioso” perigo pelo qual multidõesse deixam seduzir empenhando-se em atingirem e manterem o quantofor possível o que lhes é solicitado. Tem-se então a educação reduzida auma espécie de adestramento, ou seja, a educação presente nas estratégiasdisciplinatórias, próprias para a modelagem da conduta. Esta concepçãode educação não visa ao pensamento, não visa à descoberta, não visa à criação,pelo contrário, coisifica o homem a ponto de torná-lo um seguidor deregras, exilado de seu pensamento, aparentemente satisfeito em ser útil aosistema do qual é refém. A educação não é um instrumento de revolta, elaé prefiguradora de um comportamento homogêneo e servil. Adequar-se aoútil; autodeterminar-se ao cumprimento das normas prescritas sob a formade um código de conduta aniquila o pensamento, inibe a criatividade,condena o homem coletivo a ignorar os seus limites e as suas possibilidades.A educação como apanágio do pragmatismo e do utilitarismo condenaa sociedade ao desprezo da inteligência,2 despotencializando a naturezahumana.Ora, há quem diga que não era este o projeto da sofística e de fatonão podemos reduzir a contribuição dos sofistas ao mau uso que fizeramdos seus pensamentos. Entretanto tal perigo sempre existiu. Para os sofistasgregos na Antiguidade Clássica, a produção dos discursos, o uso e o domínioda téchne discursiva eram criativos, agradáveis, pois, segundo elesmesmos, produziam subjetividades felizes e bem logradas. A subversão dasofística pelo uso do poder político e a subjetividade produzida por essepoder sedimentaram a desvalorização da inteligência, intimidaram a criaçãoe produziram, por meio da educação sistemática e teleológica, o útilignóbil coletivo e o domínio político da ignorância. O maior temor dePlatão realiza-se século após século, em ordem crescente. A espécie humanavive e sonha com bens úteis, inerentes à caverna.

Notas
1. Veja-se O sofista, O Protágoras, O Górgias e A república.
2. O abandono da fundamentação significa o desprezo pela inteligência, pois, quando a aparência fala por si, perde-se a filosofia. Quando Platão critica a falta de fundamentação do modelo de educação sofística, ele está criticando a possibilidade de um reino de opiniões, desordenado e pueril, que facilmente pode ser dominado por um logos pseudés (discurso falso), com finalidade utilitária e funcional (pragmática).

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